Reflexão do Mês de Maio:
Quem Escreveu a Biblia?
Quem Escreveu a Biblia?
Em algum lugar do Oriente Médio,
por volta do século 10 a.C., uma pessoa decidiu escrever um livro. Pegou uma
pena, nanquim e folhas de papiro (uma planta importada do Egito) e começou a
contar uma história mágica, diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era
tão forte, mas tão forte, que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos
seguintes, outras pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando
aquele texto, que viria a se tornar o maior best seller de todos os tempos: a
Bíblia. Ela apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os
fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento do islã,
mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os afrescos de
Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos legou noções básicas
da vida moderna, como os direitos humanos e o livre-arbítrio. Mas quem
escreveu, afinal, o livro mais importante que a humanidade já viu? Quem eram e
o que pensavam essas pessoas? Como criaram o enredo, e quem ditou a voz e o
estilo de Deus? O que está na Bíblia deve ser levado ao pé da letra, o que até
hoje provoca conflitos armados? A resposta tradicional você já conhece: segundo
a tradição judaico-cristã, o autor da Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto
final. Mas a verdade é um pouco mais complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação
divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada,
mas foi escrita por reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências
concretas da maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia.
Mas ela não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca
inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé. Aliás,
o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta
hagia – “os livros sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada
livro bíblico foi escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros
livros do Antigo Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo
Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os
Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e
assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros
sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
A própria Igreja admite que a
revelação divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor
é sagrada, mas foi escrita por reles mortais. Como não sobraram vestígios nem
evidências concretas da maioria deles, a chave para encontrá-los está na
própria Bíblia. Mas ela não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma
biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela
fé. Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia
ta hagia – “os livros sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada
livro bíblico foi escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros
livros do Antigo Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo
Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os
Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e
assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros
sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
As raízes da árvore bíblica
também remontam aos sumérios, antigos habitantes do atual Iraque, que no 3o
milênio a.C. escreveram a Epopéia de Gilgamesh. Essa história, protagonizada
pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual
algumas pessoas se salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia
e seus textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e
divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra aberta,
com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em história antiga
Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os
escritores hebreus começaram a colocar essa sopa multicultural no papel. Isso
aconteceu após o reinado de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num
pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das
Escrituras foi redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são
o Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional (e
às vezes conflituosa) entre Deus e os homens. Só que, logo no começo da
Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do Senhor na
história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é tratado por dois
nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome
próprio, Yahweh – traduzido em português como Javé ou Jeová. É um tratamento
informal, como se o autor fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o
Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante (que pode
ser traduzido simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os
fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois
nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto narra a morte do
próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único autor. Os historiadores e a
maioria dos religiosos aceitam outra teoria: esses textos tiveram pelo menos
outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de
Javé sejam os mais antigos, escritos numa época em que a religiosidade era
menos formal. Eles contêm uma passagem reveladora: antes da criação do mundo,
“Yahweh não derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o
solo”. Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na
primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus –
ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda. “Nesse relato, o
homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto Gonçalves, do Centro
Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos
foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta de 850
a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs uma narrativa
bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o mundo num único dia, o
Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7o). Nessa história, a criação é um ato
exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no 6o dia, junto aos animais. Tempos
mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores anônimos – e a
narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das Escrituras.
Começando por aquela frase incrivelmente simples e poderosa, notória até entre
quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da
população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, os
hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador
“esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os hebreus
retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os sacerdotes judaicos
rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto deus do
Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a
religião deles, o masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso, Ahura
Mazda, em constante combate contra um deus maligno, Arimã. Essa noção se
reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o Diabo”, afirma
Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época,
um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram
radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram os livros
anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio, Números,
Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10 Mandamentos. Além de
afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás a Deus acima de todas as
coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras impunha leis
religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre hebreus e
não-hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à ética
moderna dos direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o
maltrates. Ama-o como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um
Senhor belicoso, vingativo e sanguinário, que ordena o extermínio de cidades
inteiras – mulheres e crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por
que os textos sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana
Karen Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os
especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras
com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram
influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que
Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam
extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados)
hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A
primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a
mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande centro cultural da
época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego) foi realizada
por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como Septuaginta. Além da
tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no idioma aramaico
– que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois
séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a mais lida
na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os atuais
territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande
personagem desta história, começou a se destacar. Como Sócrates, Buda e outros
pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré nada deixou por escrito – os
primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por
se recusarem a cultuar os deuses oficiais, os cristãos eram considerados
subversivos pelo Império Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde
o século 1 a.C. Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no
papel as histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um
dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender suas
origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira,
da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero
literário: o evangelho. Esse termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é
um tipo de narrativa religiosa contando os milagres, os ensinamentos e a vida
do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos
séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela época, um “livro” era um amontoado de
papiros avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente
extraviados e perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão,
por membros da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de
códice – um conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro
moderno. O problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de
copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja por
descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que
às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também
propositais, de acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e teólogo
Luigi Schiavo, da Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe
aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser apedrejada? De
acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho de João por
algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na época, o cristianismo
estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E apedrejar adúlteras é
uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco.
A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os
ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos já não
precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia
cristã, o Apocalipse (que descreve o fim do mundo), o receio de ter suas
narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. No
versículo 18, lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas
deste livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça
reflete bem o clima dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira
baderna teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus
e o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não teve um
corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte não passariam –
literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que Jesus não
nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira
tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o
responsável não foi um clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado
Marcião.
A Bíblia segundo Marcião
Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao
cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria seleção
de textos sagrados. A Bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos
hoje. Isso porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje desaparecida, o
gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o mesmo que
enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas mortais. O Deus
hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já
o universo espiritual seria dominado por um Deus bondoso, o pai de Jesus. A
Bíblia editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de
Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de Marcião tivessem
triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a arca de Noé e a
travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura ocidental. Mas, por volta
de 170, o gnosticismo foi declarado proibido pelas autoridades eclesiásticas, e
o primeiro editor da Bíblia cristã acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos,
ia se rendendo à nova fé. Em 313, o imperador romano Constantino se aliou à
Igreja. Ele pretendia usar a força crescente da nova religião para fortalecer
seu império. Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão
de Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no
Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, surgiu o
cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo a Igreja,
realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo
afirmou seu poder e autoridade sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo
era o dos cristãos apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império
Romano. Os apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso
definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para
representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos docetas,
dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus autores declarados
hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra
que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos apócrifos se
perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não estavam interessados em
recopiá-los para a posteridade. Mas, com o surgimento da arqueologia, no século
19, pedaços desses textos foram encontrados nas areias do Oriente Médio. É o
caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma
certa “Maria” que muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente
em vários trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem
feminista: Madalena é descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os
outros apóstolos. Nos primórdios do cristianismo, as mulheres eram aceitas no
clero – e eram, inclusive, consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no
século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que explicaria a censura
da apóstola e seu testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena não foi
prostituta – idéia que teria surgido por um erro na interpretação do livro
sagrado. No ano 591, o papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra
mulher, também citada nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam
a mesma pessoa (em 1967, o Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de
Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo
vários trechos machistas – e suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao
apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à
mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi
formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha escrito
essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o cristianismo não pregava
a submissão da mulher. Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada por
algum escriba por volta do século 2.
Após a conversão do imperador
Constantino, o eixo do cristianismo se deslocou do Oriente Médio para Roma. Só
que, para completar a romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra
de Deus para o latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais
tarde viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o
Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina,
que até hoje é o texto oficial da Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo
mundo conhece. “A Vulgata foi o alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o
padre Luigi. Ela é tão influente, mas tão influente, que até seus erros de
tradução se tornaram clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve
o semblante do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse
facies sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi
levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura
representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois belos
corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que pode
significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na
Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros
como esse, a Vulgata reinou absoluta ao longo da Idade Média – durante séculos,
não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro
sagrado era copiá-lo à mão, tarefa realizada pelos monges copistas. Eles
raramente saíam dos mosteiros e passavam a vida copiando e catalogando
manuscritos antigos. Só que, às vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da
Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges
copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas alguns
deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas Escrituras Sagradas
para agradar a reis e imperadores. No século 15, por exemplo, monges espanhóis
trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo Testamento – um
truque para atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a posse da
península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da
imprensa, em 1455. Agora ninguém mais dependia dos copistas para multiplicar os
exemplares da Bíblia. Por isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado
passou a ser outro: as traduções.Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a
imprensa para divulgar em massa sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto
do hebraico e do grego para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado
era vertido numa língua moderna – e a nova versão trouxe várias mudanças, que
provocavam a Igreja (veja quadro na pág. 65). Logo depois um britânico, William
Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o inglês. No Novo Testamento, ele
traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em vez de “igreja”, o termo
preferido pelas traduções católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio
ao poder dos papas: como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a
Igreja. Resultado? Ele foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho
é referência para as versões inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 –
quando foi publicada sua primeira tradução completa para o português, feita
pelo protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial
é a feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em
2001. Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida para mais
de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do mundo: todos os
anos, são publicadas 11 milhões de cópias do texto integral, e 14 milhões só do
Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há
consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas do
hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de 1990. Outros
acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair leitores. O lingüista
Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 1960, chegou ao extremo de
traduzir a palavra “sestércios”, a antiga moeda romana, por “dólares”. Em 2008,
duas versões igualmente ousadas estão agitando as Escrituras: a Green Bible
(“Bíblia Verde”, ainda sem versão em português), que destaca 1 000 passagens
relacionadas à ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a
Bible Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e
fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não
muda: cada pessoa, ou grupo de pessoas, a interpreta de uma maneira diferente –
às vezes, com propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores
fundamentalistas tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos
EUA, sendo que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de
1950. Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o
apedrejamento de adúlteros, e no Oriente Médio rabinos extremistas usam trechos
da Torá para justificar a ocupação de terras árabes. Por quê? Porque está na
Bíblia, dizem os radicais. Não é nada disso. Hoje, os principais estudiosos
afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um manual de regras literais – e
sim como o relato da jornada, tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em
busca de Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de
histórias regada há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações
humanos: a crença num sentido transcendente da existência.
Top 5 pragas
I.
Quando os hebreus eram escravos no Egito, o Senhor enviou 10 pragas contra os
opressores do povo escolhido. A primeira delas foi transformar toda a água do
país em sangue (Êxodo 7:21).
II.
Como o faraó não libertava os hebreus, o Senhor radicalizou: matou, numa só
noite, todos os primogênitos do Egito. “E houve grande clamor no país, pois não
havia casa onde não houvesse um morto” (Êxodo 12:30).
III.
Desgostoso com os pecados de Sodoma e Gomorra, Deus destruiu as duas cidades
com uma chuvarada de fogo e enxofre (Gênesis 19:24).
IV.
Para punir as desobediências do rei Davi, o Senhor enviou uma doença não
identificada, que matou 70 mil homens e 200 mil mulheres e crianças (2 Samuel,
24: 1-13).
V. Quando a
nação dos filisteus roubou a arca da Aliança, onde estavam guardados os 10
Mandamentos, o Senhor os castigou com um surto de hemorróidas letais. “Os
intestinos lhes saíam para fora e apodreciam” (1 Samuel 5:9) .
Os
possíveis autores
1200 a.C. - Moisés
Segundo uma lenda judaica, a Torá (obra
precursora da Bíblia) teria sido escrita por ele. Mas há controvérsias, pois
existe um trecho da Torá que diz: “Moisés morreu e foi sepultado pelo Senhor
próximo a Fegor”. Ora, se Moisés é o autor do texto, como ele poderia ter
relatado a própria morte?
1000 a.C. – Javista
Viveu na corte do rei Davi, no
antigo reino de Israel, e era um aristocrata. Ou, quem sabe, uma aristocrata:
para o crítico Harold Bloom, Javista era mulher. Isso porque os personagens
femininos da Bíblia (Eva e Sara, por exemplo) são muito mais elaborados que os
masculinos.
Século 4 a.C. – Esdras
Líder religioso que reformou o judaísmo e possível
editor do Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia). Vários trechos bíblicos
editados por ele pregam a violência: “Derrubareis todos os altares dos povos
que ides expropriar, queimareis as casas, e mudareis os nomes desses lugares”.
Século 1 – Paulo
Nunca viu Cristo pessoalmente,
mas foi o primeiro a escrever sobre ele. Nascido na Turquia, Paulo viajou e
fundou igrejas pelo Oriente Médio. Ele escrevia cartas para essas igrejas,
contando a incrível aventura de um tal Jesus – que foi crucificado e
ressuscitou.
Século 1 - Maria Madalena
Estava entre os discípulos favoritos de
Jesus – e, diferentemente do que o Vaticano sustentou durante séculos, nunca
foi prostituta. Pelo contrário: tinha influência no cristianismo e é a suposta
autora do Apócrifo de Maria, um livro em que fala sobre sua relação pessoal com
Jesus e divulga os ensinamentos dele.
Século 1 - João
Escreveu o 4o evangelho do Novo Testamento
(João) e o Livro do Apocalipse, o último da Bíblia. Para ele, Jesus não é
apenas um messias – é um ser sobrenatural, a própria encarnação de Deus. Essa
interpretação mística marca a ruptura definitiva entre judaísmo e fé cristã.
Século 5 - Jerônimo
Nascido
no território da atual Hungria, este padre foi enviado a Jerusalém com uma
missão importantíssima: traduzir a Bíblia do grego para o latim. Cometeu alguns
erros, como dizer que o profeta Moisés tinha chifres (uma confusão com a
palavra hebraica karan, que na verdade significa “raio de luz”).
Século 16 - William Tyndale
Possuir trechos da
Bíblia em qualquer idioma que não fosse o latim era crime. O professor Tyndale
não quis nem saber, traduziu tudo para o inglês, e acabou na fogueira. Mas seu
trabalho foi incrivelmente influente: é a base da chamada “Bíblia do Rei James”,
até hoje a tradução mais lida nos países de língua inglesa.
Top
5 matanças
I.
Um grupo de meninos malcriados zombou da calvície do profeta Eliseu. Pra quê!
Na hora, dois ursos famintos saíram de um bosque e comeram as crianças (2 Reis
2:24).
II. Cercado por um exército de
filisteus, o herói Sansão apanhou a mandíbula de um jumento morto. Usando o
osso como arma, ele massacrou mil inimigos (Juízes, 15:16).
III. O profeta Elias convidou os
sacerdotes do deus Baal para uma competição de orações. Era uma armadilha:
Elias incitou o povo, que linchou os pagãos (1 Reis 18:40).
VI. Os judeus haviam perdido a fé
e começaram a adorar um bezerro de ouro. Moisés ficou furioso e mandou
sacerdotes levitas matar 3 mil infiéis (Êxodo 32:19).
V. A nação dos amalequitas disputava o território de Canaã
com os judeus. O Senhor ordena que todos os amalequitas sejam chacinados (1
Samuel 15:18).
Top
5 satanagens
I.
Após a destruição de Sodoma, os únicos sobreviventes eram Ló e suas duas
filhas. As filhas de Lot embebedaram o pai e tiveram com ele a noite mais
incestuosa da Bíblia (Gênesis 19:31).
II.
O Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão, é altamente erótico. Um dos
trechos: “Teu corpo é como a palmeira, e teus seios, como cachos de uvas”
(Cânticos 7:7).
III.
Os anjos do Senhor tiveram chamegos ilícitos com mulheres mortais. “Vendo os
Filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram-nas como
mulheres, tantas quanto desejaram” (Gênesis 6:2).
IV.
A Bíblia diz que os antigos egípcios eram muito bem-dotados. Após a fuga para
Canaã, a judia Ooliba tem saudades dos tempos em que se prostituía no Egito.
Tudo porque “seus amantes (...) ejaculavam como cavalos” (Ezequiel 23:20).
V. O hebreu Onã casou com a viúva de seu irmão, mas não
conseguia fazer sexo com ela – preferia o prazer solitário. Do nome dele vem o
termo “onanismo”, que significa masturbação (Gênesis 38:9).
As
história da história
Como o livro sagrado evoluiu ao longo dos tempos
Tanach - Século 5 a.C.
É a Bíblia judaica, e tem 3 livros: Torá
(palavra hebraica que significa “lei”), Nebiim (“profetas”) e Ketuvim
(“escritos”). É parecida com a Bíblia atual, pois os católicos copiaram seus
escritos. Contém as sementes do monoteísmo e da ética religiosa, mas também
pregações de violência. A primeira das bíblias tem trechos ambíguos e
misteriosos – algumas passagens dão a entender que Javé não é o único deus do
Universo.
Septuaginta - Século 3 a.C.
O Oriente Médio era dominado pelos gregos e
pelos macedônios. Muitos judeus viviam em cidades de cultura grega, como
Alexandria, e desejavam adaptar sua religião aos novos tempos. Diz a lenda que
Ptolomeu, rei do Egito, reuniu um grupo de 72 sábios judeus para traduzir a
Tanach – e fizeram tudo em 72 dias. Por isso, o resultado é conhecido como
Septuaginta. Inclui textos que não constam da Tanach.
Novo Testamento - Século 1
A língua do Antigo Testamento é o hebraico,
mas o Novo Testamento foi escrito num dialeto grego chamado coiné. Contém os
relatos sobre vida, milagres, morte e ressurreição de Jesus – os evangelhos. Em
alguns trechos, vai deixando evidente a divergência entre cristianismo e
judaísmo. É o caso, por exemplo, do Evangelho de João, em que Jesus é descrito
como uma encarnação de Deus (coisa na qual os judeus não acreditavam).
Católica - Século 4
Seus autores decidiram incluir 7 livros que
os judeus não reconheciam. São os chamados Deuterocanônicos: Tobias, Judite,
Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, Macabeus 1 e 2 (mais trechos dos livros
Daniel e Ester). A Bíblia católica bate na tecla do monoteísmo: a palavra
hebraica Elohim, usada na Tanach para designar a divindade, é o plural de El,
um deus cananeu. Mas foi traduzida no singular e virou “Senhor”.
Ortodoxa - Por volta do século 4
É
baseada na Septuaginta, mas também inclui livros considerados apócrifos por
católicos e protestantes: Esdras 1, Macabeus 3 e 4 e o Salmo 151. A tradução é
mais exata (nesta Bíblia, Moisés nunca teve chifres, um erro de tradução
introduzido pela Bíblia latina), e os escritos não são levados ao pé da letra:
para os ortodoxos, o que conta são as interpretações do texto bíblico, feitas
por teólogos ao longo dos séculos.
Protestante - Século 16
Ao traduzir a
Bíblia para o alemão, Martinho Lutero excluiu os livros Deuterocanônicos e
mudou algumas coisas. Um exemplo é a palavra grega metanoia, que na Bíblia
católica significa “fazer penitência” – uma referência à confissão dos pecados,
um dos sacramentos católicos. Já Lutero traduziu metanoia como “reviravolta”.
Para ele, confessar os pecados era inútil. O importante era transformar a vida
pela fé.
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5 milagres
I. O maior de todos os milagres divinos foi o primeiro: a
Criação do mundo, pelo poder da palavra. “E Deus disse: que haja luz. E houve
luz” (Gênesis 1:3).
II.
Para dar-lhe uma amostra de seus poderes, o Senhor leva Ezequiel a um campo
cheio de esqueletos – e os traz de volta à vida. “O vento do Senhor soprou
neles, e viveram” (Ezequiel, 37; 1-28).
III.
Graças à benção divina, o herói Sansão tinha a força de muitos homens. Certa
vez, foi atacado por um leão. “O espírito do Senhor deu-lhe poder, e Sansão
destroçou a fera com as próprias mãos, como se matasse um cabrito” (Juízes
14:6).
IV.
Josué liderava uma batalha contra os amalequitas, mas o Sol estava se pondo.
Como não queria lutar no escuro, o hebreu pediu ajuda divina – e o Sol ficou no
céu (Josué 10:13).
V. Para fugir
do Egito, os hebreus precisavam atravessar o mar Vermelho. E não tinham navios.
Moisés ergueu seu bastão e as águas do mar se dividiram. Após a passagem dos
hebreus, o profeta deixou que as ondas se fechassem sobre os exércitos do faraó
(Êxodo 14; 21-30).
Autor:
Jony Edson da Silva Mateus
Poço Branco RN
Autor:
Jony Edson da Silva Mateus
Poço Branco RN
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