Unanimidade entre os fãs da música popular
romântica, cantor e compositor citado e gravado por diversos cantores presentes nesta série, Bartô Galeno é tratado como rei
por onde passa. Humilde, a voz macia e a cabeleira farta, é ainda um dos mais
requisitados cantores de seu gênero, com uma agenda que pode chegar a cinco
shows semanais. Aqui, acompanhado pela esposa Socorro, ao seu lado
desde o início de sua carreira, Bartô fala sobre sucesso, bebida e uma possível
– e sempre protelada – aposentadoria.
Fotos Ricardo
Labastier – JC Imagem
Sentando no camarim
improvisado, Bartô Galeno não acreditava: eram 7h30 da manhã de um domingo e o
largo do Arouche, região central de São Paulo, concentrava uma multidão. Essa
tinha um caráter universal particular: era formada pelos novinhos, os coroas,
os de mãos dadas, os solteiros, os que haviam acabado de chegar, os que,
latinha na mão e pouco sóbrios, passaram a noite à procura de algo que não sabiam
identificar. Mulheres e homens chamavam por seu nome.
Quando ele entrou,
os cabelos em dramáticos cachos, veio o barulho: palmas, gritos, fotos,
“Bartô!”, “Bartô!”. Era uma recepção e tanto, principalmente para um horário
malvado daquele. O cantor, era verdade, estava acostumado a um público efusivo:
30 anos antes daquele 3 de abril de 2009, estava em um camarim improvisado no
garimpo de Serra Pelada. Escutou os novinhos, os coroas, os vários solitários,
todos homens e poucos sóbrios, as garrafas de cerveja na mão. Chamavam por seu
nome. Palmas, gritos, “Bartô!”, “Bartô!” e tiros. Muitos tiros. Se assustou, a
voz tremeu, se acalmou quando explicaram os disparos: “É porque gostam de
você”. Era verdade: no fim do show, jogavam pepitas de ouro aos seus pés.
Das apresentações
nos garimpos da selva amazonense (“era tanto nordestino ali isolado do resto do
mundo”) até o show realizado na Virada Cultural paulistana, Bartô, nascido em
1950, 40 anos de carreira, esteve em frente a milhões de pessoas que o tratam
como um rei. Modesto, nunca reclamou para si o título relacionado tanto àquele
que é sua grande inspiração (Roberto Carlos)
quanto a outro cantor que compartilha de sua seara musical (Reginaldo Rossi).
Mas a coroa,
note-se, não é necessária: um exemplo é que o cantor e compositor de Sousa, na
Paraíba, foi constantemente citado tanto pelos artistas que aparecem nesta
série quanto pelos fãs da música popular romântica do país. Bartô chama atenção
por onde passa: foi assim no dia da entrevista para esta reportagem, marcada em
um shopping center no bairro do Meireles, em Fortaleza. No jardim do
restaurante, um grupo de garçons reuniu-se para ver o cantor posar para fotos
acompanhado por uma fita cassete. Antes, quando se dirigia ao local, um relógio
dourado no pulso, o blue jeans à 70, acenou para fãs nos corredores. Fotos e
“Bartô! Bartô!”.
Não é fácil
precisar a afetividade instantânea que sentimos pelo cantor e compositor a
partir de qualquer contato mais aproximado (em um show, em uma simples audição
ou em uma entrevista de duas horas). Baixa estatura, magrinho, o cabelo meio RC
nos anos “Lady Laura” (1978), a voz amaciada e meio tremida, ele é dono de uma
conhecida simplicidade. Personifica o cara boa-praça que assume o tom
conciliatório quando os egos ficam mais alterados, o moço simpático que não
precisa sorrir mais alto, nem falar por último, nem mostrar que é o mais sagaz
do grupo.
Simplificando:
Bartô é gente boa. Um exemplo foi a postura do cantor durante esta conversa:
várias de suas respostas foram interceptadas pela esposa, Socorro, com quem
está casado desde 1975. Perguntou-se quando ele deixou a Paraíba para morar no
Rio. “Ah, foi em 1969, no dia 2 de julho de 1969, eu…” “Ah, foi no dia em que a
Apollo chegou à Lua… Ele sempre conta essa história.” O cantor sorri, toma
outro gole de água e só responde: “É, foi, foi”. (A expressão em repeteco seria
usada várias outras vezes, nos momentos em que Socorro tomou a fala para si.)
Mas antes de o
homem chegar à Lua e Bartô ao Rio, há, é claro, a gênese do mito: o filho de João de Deus e Carlota foi
pequeno, 10 anos, morar em Mossoró, Rio Grande do Norte (terra fértil dos
cantores da música popular romântica, como atesta esta própria série). A
família, que passava por dificuldades financeiras, logo montou um tabuleiro de
frutas em uma pequena feira local.
Bastinho Silva, o
futuro Galeno, ajudava a vender os produtos enquanto começava a tocar violão e
a cantar. A voz agradava e chegou aos ouvidos de um locutor da rádio Rural,
Manuel, dono de um programa de auditório. Bastinho terminou lá no palco,
aplaudido (começava ali sua relação de amor com o público).
Aí veio 1969:
enquanto a ditadura militar provocava dor e assombro para alguns e felicidade e
segurança para outros, o rapaz vencia o concurso “A Mais Bela Voz”. O título
foi a mola que o impulsionou para o Recife. “Fiquei por lá somente duas
semanas.” Trabalhou em um restaurante, arrumou as malas, foi para São Paulo, se
aquietou no Rio.
Não foi uma chegada
solitária, é verdade: quem estava por lá era Oséas Lopes, o
futuro Carlos André (presente nesta série), que mais
tarde viraria estrela com “Se Meu Amor
Não Chegar” (1974). Era, no entanto, já prestigiado por conta do Trio Mossoró – o grupo já havia encontrado o
menino de Sousa em São Paulo, e foi lá que Bastinho morreu para dar vez a
Bartô.
“Isso não é nome de
artista”, disseram. Na operação do rebatizado, o Bartolomeu tomou o rumo
natural do Bartô, mas o sobrenome era um problema. Pensaram até em manter o
Silva, mas era simplicidade demais para concorrer com os adrianis e sorianos do
momento. Aí surgiu o Galeno, bom reforço para o desenvolvimento da gênese do
mito.
No Rio, Bartô
escreveu canções para nomes como Odair José e Genival Santos (o homem do “Eu Lhe Peguei no
Flagra“, presente nesta série), também para Carlos André e Fernando Mendes. Seu parceiro mais comum era Antônio Pires (irmão do cantor Roberto Müller, outro dos sete cantores de coração
partido trazidos neste especial). Havia uma espécie de fraternidade entre os
diversos cantores nordestinos que tentavam ocupar um espaço legítimo em meio a
imensa produção fonográfica carioca. “Era tudo muito difícil, mas nós nos
ajudávamos. Escrevíamos à mesa, saíamos para beber e compor”, lembra.
Começou a ganhar
dinheiro com a composição, mas não havia esquecido do título de Mais Bela Voz.
Queria cantar. Como era comum na época, passou pelos programas de auditório,
entre eles, é claro, o de Chacrinha. Bartô
lembra-se bem da longa fila para o teste, no qual a triagem era baseada em um
enorme pragmatismo: “Esse canta, esse não canta, esse só tem boniteza, bota ele
pra cá”.
Com a ajuda de
Carlos André, que estava trabalhando na Copacabana, conseguiu ser apresentado
aos produtores da gravadora Tapecar. Em 1975, gravou o LP Só lembranças, lançado no ano seguinte. O álbum,
relançado em 1978, fez sucesso: “Cadeira Vazia” e “Amor
Vagabundo” tornaram-se hits.
Em 1977, veio Pelo menos uma palavra, que antecedeu aquele que
seria o Sgt. Pepper’s, o Dark Side of the Moon de
Bartô: o LP No Toca-Fitas do Meu Carro,
cuja faixa-título o elevou para o panteão da música popular romântica nacional.
A música, autobiográfica, foi inspirada nos momentos de solidão que o cantor
passou enquanto dirigia seu Chevette, o primeiro carro que comprou na vida.
Bartô diz que
praticamente sustentava toda a Tapecar com a venda dos seus discos – o sucesso
fez com que o cantor passasse por gravadoras maiores, como a WEA, a Continental,
a RGE (nos anos 90, ele também foi lançado pela recifense Polydisc).
Vendas e cabeleiras
fartas, ele manteve a mão no freio e não deixou o sucesso provocar
abalroamentos: continuou a prezar pela própria humildade. Mantinha, também, o
hábito de beber com os colegas cantores e compositores. Socorro, que
compartilha a entrevista e uma água mineral com o marido, conta que era uma
época difícil. “Ele saía e não voltava, passava dias fora de casa.” Enfrentava,
não em um Chevette, mas em casa, a solidão quando o marido saía em turnê. “Eu
chorava, me sentia só.” Bartô, lembrando-se das farras e dos shows com os
amigos, pensa alto o que talvez não devesse ser verbalizado: “Era tão bom…”.
Hoje, com a saúde
mais frágil, ele jura ter deixado a bebida para trás. Precisa de fato cuidar de
si para dar conta da agenda apertada: há noites em que faz três shows. “Eu
penso em parar, mas, quando acaba um mês, já tem outro todo lotado.”
Geralmente, vende as apresentações em uma espécie de “pacote”: três shows
comprados por determinado cliente saem por R$ 15 mil. Se for um show único, o
preço é elevado. Apresenta-se bastante no Sudeste, onde vive (Rio de Janeiro).
Os shows são
concorridos e é comum, segundo ele, encontrar jovens que estão o descobrindo
agora. Os depoimentos dos novos fãs por vezes provocam o riso do cantor. “Eles
dizem ‘meu pai, quando era vivo, gostava de você’, ou então ‘ele não bebe mais,
mas quando bebia, curtia muito seus discos’”, conta. Outra gafe comum – e que
Bartô adora falar – é confundirem músicas populares de outros cantores como
sendo dele. “Bartô, canta ‘Fuscão Preto'”, “Bartô, canta ‘no hospital, na sala de cirurgia’.” Ri de novo.
Pouco depois,
quando lhe pedem para se enrolar na fita cassete que remete ao seu maior
sucesso, ele se anima. Apesar de meio abatido (Bartô estava doente no dia da
entrevista), apesar de estar a poucas horas de realizar mais um shows, ele
passa quase uma hora posando para fotos. No final, enrola toda a fita
magnética. “Vão precisar dela? Quero pra mim.” Levou a fita como uma espécie de
suvenir de mais um dia de trabalho. Como se a celebridade, quem devesse ser
cortejado e lembrado, não fosse ele.